A escrita de Maria Valéria Rezende me impressionou e deu vida à minha viagem ao Brasil Colônia, e não por ter sido criada em um estilo de prosa oitocentista, mas por constuir um belo e fidedigno texto epistolar para leitores contemporâneos. A respeito deste trabalho, a autora afirmou:

"Como resolvi fazer uma carta, tive que trabalhar muito para fazer um texto plausível do século XVIII, mas, ao mesmo tempo, legível no século XXI. Foi uma trabalheira danada". 

O livro é dividido em quatro partes que compõem uma grande carta escrita pela protagonista para ser endereçada à monarca portuguesa. A mensagem de "Carta à Rainha Louca" é, naturalmente, feminista. A obra revela, a partir de Isabel das Santas Virgens, a vida de mulheres que, de alguma forma, não foram e não são aceitas ou "encaixadas" socialmente. 

Isabel inicia seu empreendimento em 1789, e logo na primeira parte informa todo o teor da trama: ela encontra-se presa no Recolhimento da Conceição, em Olinda, e escreve para obter  remissão de supostos crimes. Acredita que a rainha portuguesa, por ser mulher, compreenderia as razões que a tornaram prisioneira, oriundas de injustiças que só acontecem às pessoas do sexo feminino. 

O pai de Isabel foi capataz em uma fazenda, mas fugiu por ter assassinado certo capitão do mato que tentou violar Isabel. Obrigada a viver naquele lar, passou a servir Blandina, uma menina de idade semelhante que se torna também uma parceira ao longo de boa parte de sua história. A vida das moças é abalada quando surge um tal Diogo, sedizente bastardo da nobre família portuguesa dos Távoras. O rapaz, típico sedutor vagabundo, conquista as duas, em especial Blandina, engravida-a e, obviamente, some-se embora logo depois. O pai da embuchada descobre, toma a criança, e manda a filha para a casa de recolhimento junto de Isabel.

Tais instituições eram o destino de muitas mulheres no período colonial, seja porque tinham a mesma desgraça de Blandina, ou para ficarem seguras durante as viagens dos maridos ciumentos. Porém, uma classe de mulheres parava lá simplesmente por não serem úteis à sociedade: eram as sobrantes. Brancas, não se tornavam escravas, e tampouco podiam se casar e dar filhos pela falta de dote. Não tinham, portanto, outra solução senão as casas de recolhimento ligadas à Igreja.

Isabel é corajosa e idealista. Traça seu destino e passa a ser seguida por outras pessoas, que vêem nela uma líder espiritual. O agrupamento em torno de Isabel se transmuta em comunidade religiosa com direito a um "convento", uma propriedade adquirida por Isabel. Não demora para a movimentação em torno da heroína chamar atenção da Igreja. Afinal, na prática atuam como instuição calólica clandestina.

Para mim, a chave deste texto é a relação de Isabel com a escrita. É sobre o domínio das letras que reside o conselho da autora para as mulheres. Vou me atentar um pouco a isso.

Carta à Rainha Louca como carta às mulheres 

A astuta Isabel, mesmo atravessada por tantos infortúnios, consegue sobreviver em uma realidade insuportavelmente masculina para feminista, e ainda se torna uma espécie de "freira-mártir", que monta um convento clandestino e desperta a ira dos sacerdotes católicos. 

Isabel escreve a carta à rainha por acreditar que possa existir uma espécie de "sororidade dezoitista". Certos trechos da carta são riscados devido ao teor crítico e sardônico. A personagem sente que não deveria dizer aquilo, já que não se dizia aquilo naquele tempo. A ironia consiste no fato de que a própria Maria I, que da alcunha "A Piedosa" foi para a de "A Louca" também sofria, supostamente, com essa realidade. A mensagem é clara: a realidade é dura para uma mulher e o sofrimento é uma certeza, independentemente de sua classe. 

Porém, a mensagem sútil, ao meu ver, é justamente o poder que a forma escrita, ou, estendendo a ideia, a retórica, outorga às mulheres.

A personagem é incrivelmente feminista para sua época, seja por suas opiniões, seja por suas ações. Domina as letras devido a alguma sorte que teve em aprender e trabalhar com a escrita, ela definitivamente está empoderada. É evidente que, para a autora, a educação, o letramento, é uma libertação para as mulheres. Escrever, ler, é ter consciência de uma realidade que não se mostra para muitas outras. Isto, sem dúvida, é um fato. Porém, questiono: as letras libertam, sim, mas colocam a mulher em apenas um caminho? O do feminismo? Bem, não ouso colocar opinião por estar falando de Maria Valéria Rezende e sua obra, que não se propõe a responder está questão.

Para finalizar, quero mencionar dois fatos curiosos que podem influenciar qualquer leitor a enfrentar a obra. O primeiro é que a autora é uma freira pesquisadora, fato por si só digno de atenção. O segundo é que Isabel realmente existiu. Maria Valéria a descobriu justamente nas cartas enviadas à corte portuguesa para pedir sua absolvição em relação ao convento clandestino. 

Para uma pessoa simpática às ideias feministas, diria que é uma leitura prazerosa que ajuda a entender melhor a realidade de algumas mulheres no período colonial. Para as outras pessoas, recomendaria mesmo assim, afinal, se não colocarmos nossas crenças à prova a todo instante, seremos um bom leitor?