Vasculhando o que foi escrito sobre este conto de Alice Munro encontrei textos breves, porém peremptórios: "É sobre estupro!"; "é sobre opressão que sofrem as mulheres"; "é sobre paternidade repressiva" etc. etc. etc. Como não gosto de texto “sobre algo”, mas dos que são sobre muitos algos, vou entender, como ponto de partida, que "O amor de uma boa mulher" é sobre o amor de uma boa mulher, e no meio do caminho vou extraindo os outros “sobres”. Primeiramente só quero conhecer essa boa mulher e seu amor.
Deixo aqui as impressões para que sejam encontradas por outros que, como eu, encontrou poucos escritos a respeito dessa história.
A HISTÓRIA
Introdução
Nas primeiras linhas desta quase novela, Munro descreve uma caixa de optometria que pertenceu ao médico D.M. Willems e que agora é exposta em um museu em Whalley. O objeto antigo continha instrumentos deste optometrista, morto em 1951 ao se afogar no rio Peregrine, e fora doado por um anônimo.
Jutland
Sabemos como o corpo do médico foi encontrado na primeira parte do conto, chamada Jutland. Foram três garotos que se depararam com o dr. Willems afundado com carro e tudo. Mesmo espantados, os meninos não contam para os pais de imediato o que viram. Conhecemos a rigidez familiar dos seus lares e entendemos que eles não têm muito espaço para esse tipo de relato. Contudo, vão ao capitão Tervitt para denunciar o cadáver. Este, que descansava em sua soneca, nem ouvira direito o que os meninos falaram, até porque era surdo. Devido a um comentário bobo de um deles sobre o capitão, resolvem sair correndo sem esperar o policial acordar direito e botar seu aparelho de surdez. No novo retorno ao lar, enfim um deles revela para a mãe, que imediatamente chama a polícia.
Há uma referência a “Outono da inocência - O corpo”, de Stephan King, me parece, mas ao diferentemente daquela história, não me parece que a história se trata do valor da amizade dos meninos, como a autora já nos disse. Até aqui já foram muitas páginas, e me pergunto cadê a boa mulher com seu amor.
Problemas do Coração
Na segunda parte, Problemas do Coração, enfim somos apresentados à personagem principal, Enid, uma cuidadora que trabalha na fazenda de Rupert Quinn, a tratar da sua esposa muito doente dos rins. Eles têm duas filhas, que visivelmente possuem uma relação fria com a mãe, como “órfãs desordeiras”. Rupert dorme na sua irmã, algo que aparentemente é de desconhecimento até de sua esposa. Embora não se revele bem a relação entre o casal, a sra. Quinn carrega certo ressentimento, e sente que sua morte é desejada.
Enid está nessa profissão a contragosto, pois queria ser enfermeira, e até entrou para o curso, mas antes de acabá-lo, seu pai a desencorajou, no leito de morte, porque segundo ele a enfermagem torna a mulher vulgar. O contato com corpos nus masculinos iria regenerá-la, e ela não conseguiria se casar bem, como depois sua mãe a esclareceu. Enid prometeu a seu pai, como se merecesse aquilo, porque fora criada para se sentir assim. Aceitou a vida de cuidadora como se fosse seu destino inexorável, e agora aos 37 veio trabalhar para um ex-colega de classe. Descobrimos que, na época, Enid e suas amigas costumavam Rupert sem piedade.
Nas idas para o passado de Enid, o narrador nos revela que a moça cresceu um tanto oprimida, a duvidar da sua própria bondade e percepção. Reprimia seus desejos, o que provam os sonhos que a envergonhavam. Também carrega o desejo de ser uma pessoa boa, o que mostra sua culpa pela forma que tratava Rubert, e que já no último ano tentava compensar sendo amigável com ele.
A essa personalidade que se sente tão medíocre e inferior é revelada um segredo ao final da segunda parte. Sra. Quinn pergunta a Enid se ela queria saber de algo. Sentimos que não importa a resposta, ela vai contar mesmo assim. E revela: Willens estivera ali antes de morrer.
Erro
A terceira parte, Erro, inicia-se com a descrição do acontecido: Rupert matou o médico quando este viera para um exame de rotina. Ao chegar em casa, se deparou com o médico apoiando a mão na coxa dela. Com raiva, bateu a cabeça de Willens no chão até levá-lo ao óbito. A sra. Quinn disse que ajudou o marido no plano de se livrar do corpo, e reforça que ele a abusava. A causa da morte foi dada como afogamento depois do sr. Willens ter batido a cabeça contra o volante.
Mentiras
Na quarta parte, Mentiras, chegamos ao extremo da história. Enid não sabe o que fazer. Após o velório, decide que o certo é falar para Quinn que sabe, e vai recomendar a ele se entregar. Bola um plano: pede para levá-la até o meio do rio para que ela possa tirar uma foto, já que irá se despedir daquele lugar. Em seguida, perguntará a profundidade daquele rio, e dirá que não sabe nadar. Então vai revelar o que sabe e perguntar se é verdade. Irá dizer que ele precisa se entregar pois não pode viver com aquilo. Caso queira matá-la, é só empurrá-la com o remo, voltar nadando e trocar de roupa. A máquina fotográfica, se encontrada, mostrará a prova do afogamento. Mas diz que se seguir sua recomendação, vai acompanhá-lo no juri, irá visitá-lo na cadeia e tudo mais, e deixa a entender que seria sua companheira.
A dúvida ainda a perturba. Considera que pode ser mentira, uma vez que, antes de revelar o crime, a sra. Quin zombou das coisas que contam para Enid: aposto que é tudo mentira. Ademais, aprendeu a não confiar nas percepções. Aos quatro ou cinco anos, visitou o escritório do seu pai e o viu com os lábios nos seios de outra mulher. Contou para sua mãe que uma “frente” desta sra. estava enfiada na boca do papai. A mãe perguntou o que é a tal frente, e na falta da palavra sei ela disse: igual uma casquinha de sorvete. Sua mãe então mostrou o próprio seio, um “objeto esmaecido”, e perguntou se era igual. Não era. A mãe então conclui que a menina estava vendo coisas. Mais tarde Enid acreditou na versão da mãe, pois se não fosse uma casquinha de sorvete era a ponta do chapéu.
Agora, pensamentos positivos também a acometem em sua dúvida. Ela considera outras possibilidades que se aproximam, evidentemente de viver com ele. Cuidaria da casa, organizaria tudo e todos os compartimentos.
Então com Rupert se dirigem ao rio.
OS SOBRES
Um texto possui infinitos sobres, mas vou me ater aos que pularam em mim na medida em que lia, relia e investigava por aí.
Destino x liberdade
Obviamente, a história mostra as marcas culturais da época. É bem evidente que o destino das mulheres é direcionado e sem muitas escolhas a elas. Enid aceitou o pedido do seu pai. As mães dos meninos também vivem em um lar de domínio masculino. Essa aceitação de uma vida traçada por outros, pelos homens, é contrastada com a liberdade dos meninos. Ainda que a primeira parte seja, ao meu ver, muito longa, como se a autora unisse duas histórias, podemos ver essa leveza nos garotos que é inexistente em qualquer personagem feminino da história.
Culpa e repressão
Enid se sente culpada por muitas coisas, como sonhos impróprios ou pelas ações como o bullying com Rupert. Ela tende a ver a si mesma como sem valor, e seu destino de cuidadora parece oferecer um suporte a isso. O próprio ato final, seu plano para a própria morte, parece uma expiação de um sentimento de culpa.
Educação repressiva
Enid chamou seio de casquinha de sorvete. Ela cresceu sem ter linguagem própria para falar de sexo. Seus pais fizeram um grande esforço para isolar a menina do que tende a ser sexual ou carnal. Além de não acreditar na própria percepção, ela se tornou estéril às relações “normais”, uma vez que, em nenhum momento, é dada atenção a alguma experiência romântica ou sexual que teve.
Caráter dos Quinn
Rupert tem uma personalidade dócil, o que se vê tanto em seu passado passivo em relação ao bullying quanto na forma que gere a família. É estranho pensar nele como assassino. Ao contrário, a sra. Quinn é agressiva e amargurada, sendo por causa da doença ou não. Por isso Enid chega a duvidar que o assassinato pode ter acontecido, ou acontecido da forma que ela relata. E nós também.
Apatia com a própria vida
A decisão de Enid de morrer parece fria e que destoa de uma reação normal, mas o fato de ela não ter demonstrado esse desprezo, ao menos diretamente, sobre a própria vida, não revela que não é possível que pense isso, pelo contrário, só mostra que existe uma apatia tão grande sobre viver ou não, que é capaz sim de decidir, inesperadamente, que pode morrer. Não é à toa que admira a “boa vida” que levam as vacas, que acabam no matadouro, um desastre, “mas que acaba sendo o que acontece com todos”.
Possível salvação
Ficamos sem saber o destino da moça após a ida ao rio. Mas gosto de acreditar que ela sobreviveu. Se for verdade que o sr. Quinn é o assassino, ele parece ser melancólico e dócil o suficiente para levar a sério a ideia de Enid. E como ela planejou visitar todos os compartimentos da casa, para fazer uma limpa, é possível seja ela a doadora anônima do objeto do dr. Willems ao museu.
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